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domingo, 30 de novembro de 2014

Lagamar/Cananeia - No fim da mata, o Outro


O ônibus branco, moderno e brilhante mal consegue desviar das árvores na estrada de terra estreita aberta no meio da mata virgem. Quatro horas antes, o grupo de 30 turistas saía de São Paulo também apertado, entre os tantos carros, motos e semáforos da Capital. Agora só tem barulho de vento, de água ao longe e dos animais. O veículo sacode, segue devagar e depois de um tanto de floresta cruza com as primeiras construções – um campo de futebol, poucas casas e um pátio com mesas e cadeiras – e todos se ajeitam na poltrona para buscar a janela. O motor finalmente desliga: chegaram à fazenda do lendário Francisco Mandira, filho da escrava Tereza.
A história oficial do município de Cananeia, no litoral sul paulista, não homenageia este negro mestiço, filho do senhor de escravos Antônio Florêncio de Andrade, que moveu mundos e fundos em 1868 para provar que era herdeiro daquela mata toda. A história não-oficial interessa aos turistas que estão descendo do ônibus, de preferência se contada por personagens vivos. O sorriso de Chico Mandira, 57 anos, a sétima geração depois de Francisco, mostra que história não falta por ali.
O líder das 24 famílias da Comunidade Quilombola do Mandira cumprimenta todos sorrindo, com as mãos pesadas de quem colhe ostras no mangue há 30 anos – dedos esbranquiçados e sem pelos, unhas afinadas desgastadas pela água salobra. É quando o choque cultural fica óbvio. Sapatos, agasalhos, relógios, cintos e bolsas dos turistas retratam um estilo de vida bem diferente e deslocado da realidade da mata. O desconforto inicial termina logo, na farofa de ostra, na cachaça de cataia (e em todas as outras delícias fresquinhas preparadas pela comunidade com a alegria de quem está recebendo amigos). Visitante e visitado comem, conversam, e não param mais de trocar.
Assim como essas 30 pessoas, mais 87 mil viajantes participaram de atividades do Programa de Turismo Social do Sesc SP em 2013. Os roteiros buscam facilitar o contato com comunidades locais, enriquecer a experiência do turista do ponto de vista humano e fomentar o desenvolvimento local sustentável, com práticas conscientes, sem depredar o destino ou gerar apenas benefícios financeiros. Há excursões de curta duração, como esta de três dias para Lagamar/Cananeia/Ilha do Cardoso, e passeios curtos, de um dia, para tentar despertar o olhar para alguma particularidade da cidade, como os rios escondidos de São Paulo.
O passeio não para ali no centro de convivência do quilombo. Chico e outros quilombolas mostram onde saem de barco para os viveiros de ostras (e qual a cadeia que eles criaram para fazer funcionar a Cooperostra), levam até um rio enfronhado na Mata Atlântica (a região doLagamar é o maior trecho contínuo de mata nativa do país) e também às ruínas de uma casa construída há mais de um século, na fazenda original. (O Mandira só foi reconhecido oficialmente como área quilombola em 2002). Na volta, última pausa para o café, bolo de farinha de arroz e receitas de comadre: “É só colocar quatro folhas de catáia numa garrafa de qualquer pinga e deixar lá, mas tem que ser bem seca, folha seca mesmo”, explica Chico. Uma das senhoras que acompanham a excursão fala com um garoto do quilombo: "Tem uma música que chama 'Menino do Rio'. Você não é, você é menino do mato". Todos riem, fazem piadas, convivem.
"O turismo social muda a vida das comunidades visitadas", diz o historiador Ed Marques, coordenador da agência Araribá. "Não só pelo dinheiro que faz circular, mas porque dá importância à vida de quem de outro modo seria invisível." A Declaração de Montreal – documento de 1996 (retificado em 2006) da Organização Internacional de Turismo Social (OITS) que estabeleceu as bases conceituais do turismo social – é precisa quando explica o significado do termo, no artigo 13: “A palavra ‘social’ deve evocar o aumento do sentimento de solidariedade e fraternidade, e ser uma fonte de esperança para aquelas muitas pessoas no mundo que ainda não têm tempo de lazer.”

Histórias de pescador
Arre! É pardá, e depois de ingorfar no Mandira e governá o ônibus mais uma hora pela saída da mata, a lufada de povo do centro chega de noite ao centro de Cananeia. É lombera na tarimba até o dia seguinte, dia de conhecer na quebrança um caiçara peitudo, ranzinza, sacudido e escramentado – prealo nas histórias, mas sem engabelar ninguém.
(Até que enfim! É fim de tarde, e depois de comer muito no Mandira e dirigir o ônibus mais uma hora pela saída da mata, o bando de turistas chega de noite ao centro de Cananeia. Cama e sono pesado até o dia seguinte, dia de conhecer na beira da praia um caiçara corajoso, teimoso, trabalhador e experiente – exagerado nas histórias, mas que não engana ninguém.)
Ele mesmo, Romeu Mário Rodrigues, foi quem ensinou o vocabulário caiçara ao grupo, apresentando o primeiro livro que escreveu, Dicionário – O Caiçarês. Nativo da região, monitor ambiental, taxidermista amador, contador de causo, Seu Romeu é figura tarimbada em Cananeia, conhecido principalmente pela história de luta da família (experimente a busca "romeu ilha do cardoso" no Google). Nascido na Ilha do Cardoso há 57 anos, quando era criança foi expulso pelo governo militar, que transformou o território em área de proteção ambiental e desalojou sem opção quem vivia da pesca e da agricultura familiar. Foi então morar em Cananeia e voltou ironicamente ao estabelecido Parque Estadual Ilha do Cardoso para ser guia de turismo. “Sou a única pessoa que precisou prestar concurso público pra voltar pra casa”, conta rindo aos viajantes do Sesc.
manguezal é a joia da Ilha do Cardoso. Característica de regiões em que as águas do mar encontram a dos rios, cria um ambiente muito fértil para desova de peixes, caranguejos, ostras e milhares de espécies de plantas – bromélias e orquídeas saltam aos olhos. Mas cheira mal. Tanta fertilidade gera material orgânico, aparência de lamaçal, e o enxofre no ar faz automaticamente o cérebro reconhecer cheiro de podre. Imagine então quanto preconceito recebem os trabalhadores do manguezal. Mesmo sem formação acadêmica, Seu Romeu leva o grupo a aprender biologia – e política. Sempre humilde, começa as frases com “vocês devem saber melhor que eu”, e desfaz rótulos, dá uma aula.
O papo do caiçara é largo. Durante todo o passeio de um dia, com pausa pós-almoço para um mergulho no estuário, Seu Romeu fala muito – conta das dezenas de cientistas com que trabalhou no parque (muitos gringos, que fizeram ele aprender inglês na marra – risada geral quando ele solta umas palavras, todo emperiquitado), explica as diferenças entre mangue vermelho, amarelo e preto e faz propaganda do seu principal feito: ele remontou o esqueleto de uma baleia encontrada morta numa praia de Cananeia! Ninguém acredita muito. Mas eis que, na sequência da visita, estão lá os ossos pendurados no museu desativado do parque. O caiçara é orgulho só!
Ao ter contato com contexto e valores tão diferentes, os visitantes saem transformados em diversos níveis. A dimensão afetiva é que abre a porta para a consciência social e política. "Ver o trabalho e o conhecimento tão profundo do Chico e do Romeu nos motiva, dá força para poder seguir a vida, mostra que há esperança pro nosso Brasil", diz a aposentada Maria Eva Peres, 69 anos, uma das mais animadas da turma. "Viajar só para descansar é chato."
O advogado Silvio Pansarella, 72 anos, esteve em Cananeia logo depois de voltar de uma viagem longa pelo leste asiático, quando passou por Japão, Tailândia, Cingapura e Índia. "Eu consigo comparar os modos de vida, a cultura, inclusive financeiramente. Viagens assim trazem muito conhecimento." Foi ele quem reagiu a uma explicação de Seu Romeu, quando dizia que a saracura é a fonte de informação do caiçara na maré subindo (hora de sair do mangue). Ela canta diferente. “É um funcionário que não ganha salário.” Cada um vê a vida com seu óculos próprio.
Roteiros como esse acrescentam elementos de análise e complexificação da visão de mundo dos viajantes. "Há aqueles que se tornam mais críticos, os que buscam conhecer outras facetas do lugares, os que buscam maior integração", afirma uma das coordenadoras de Turismo Social do Sesc SP, Silvia Hirao.
É noite e garoa lá fora quando o ônibus branco, moderno e brilhante estaciona na frente do Sesc Pinheiros, em São Paulo, trazendo o grupo de volta à realidade – depois de um percurso animado, com bolo de aniversário, conversê e um filme. Além do novo olhar, das novas relações e das novas memórias, a maioria carrega uma caixinha de papelão com pequenas lembranças da viagem para comer em casa: ostras que perfumarão as cozinhas da Capital por alguns dias.
Chico e Romeu continuam lá. Estariam dormindo agora? Como é a cama deles? Assistiram a um filme antes de deitar? Será que está frio? O Outro não é mais invisível.

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Fonte: SESC SP

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